domingo, setembro 28, 2025

Não tinha medo de morrer

Os últimos cinco anos foram passados com a quimioterapia ao peito. No verdadeiro sentido da palavra, era frequente trazer um fio ao pescoço com a quimioterapia pendurada. O que mais estranhava neste colega presbítero era a alegria que, mesmo assim, também transportava. Algumas vezes não resisti em dizer-lhe como isso me fazia bem. E ele apenas respondia que não era nada. E ria-se. Era como se se risse do cancro que se apoderara dele. Nos últimos tempos, o bispo quis dispensá-lo dos serviços paroquiais que se tornavam cada vez mais difíceis. Não desistiu até ter de ser levado novamente ao hospital onde lhe detetaram uma série de metástases em locais do corpo onde já não era possível atacar o maldito cancro. Restava esperar. E foi o que fez, consciente de que não se tratava de esperar o fim, mas esperar em Deus. Dizia o seu irmão, por sinal, igualmente presbítero, que ele repetia constantemente que não tinha medo de morrer porque sabia que ia ressuscitar. Em tom de brincadeira, também ia dizendo que os “bichos” não haveriam de o vencer e levar a melhor, pois quando morresse eles deixariam de ter que comer e morreriam, enquanto ele haveria de ressuscitar. E assim foi… 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é para ti, Diana, parte XI, outro jovem"

quarta-feira, setembro 24, 2025

O multiculturalismo eclesiástico

O multiculturalismo chegou à hierarquia eclesiástica. Um em cada dez padres em Espanha vem de outro país. São oriundos, na sua maioria, da América Latina. Em Portugal a percentagem ainda não chegou a estes números, mas vai-se impondo a mesma realidade. Na minha diocese já se incardinaram alguns e aumenta o número dos que vão chegando, sobretudo de países lusófonos. Todos eles vão chegando com a sua bagagem vital e espiritual para acompanhar comunidades bem diferentes daquelas que conhecem. Não entendem determinadas devoções enraizadas e tentam introduzir costumes das suas terras. Têm dificuldade em se relacionar com o presbitério nativo e, não raras vezes, também são olhados com alguma desconfiança. Não se sabe ao certo se vêm em missão ou por uma oportunidade. Mas a realidade impõe-se. 
As novas edições do Anuário Pontifício de 2025 e do Anuário Estatístico da Igreja com dados relativos a 2023, editados pelo Departamento Central de Estatísticas Eclesiásticas da Secretaria de Estado do Vaticano, dão conta que o número de sacerdotes diminuiu ligeiramente (-0,2%), sendo a Europa a detentora da maior diminuição (-1,6%) e África (+2,7%) e Ásia (+1,6%) os continentes com maior aumento. Quanto ao número de seminaristas, entre 2022 e 2023 registou-se uma quebra de 1,8%, numa diminuição que se estende a todos os continentes, com excepção da África, onde os seminaristas aumentaram 1,1%. Se a Europa levou a Boa Nova a países que foi designando de países de missão, agora é desses países que a Europa vai recebendo clérigos. É o que Zygmunt Bauman chama de era das diásporas no que se refere à migração em geral. 
A aceitação da diferença num mundo global é altamente positiva e um anseio verdadeiramente cristão. Mas veremos se o multiculturalismo eclesiástico não redunda em multicomunitarismo eclesiástico, um fenómeno que, segundo o mesmo sociólogo, em termos gerais, se refere às pessoas que vivem umas ao lado das outras, mas se fecham e barricam na sua comunidade ou modo de vida. A Europa é hoje local de missão. Mas estará a Igreja preparada para este fenómeno religioso? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como será a Igreja daqui a vinte ou trinta anos?"

domingo, setembro 07, 2025

o suicídio e o padre que é um ser humano

Segundo informações da agência UcaNews, a Igreja católica na Índia deparou-se, nos últimos cinco anos, com o suicídio de, pelo menos, treze padres, o que dá uma média de um suicídio a cada seis meses. Segundo dados apresentados pelo padre Lício de Araújo Vale, de agosto de 2016 a junho de 2023 tinham-se suicidado no Brasil quarenta padres. Em março de 2023 o jornal Correio da Manhã dava conta do suicídio de treze padres em Portugal. Sabe-se que a sociedade hodierna potencia personalidades fragmentadas, depressivas e emocionalmente débeis. No entanto, torna-se difícil entender que alguém que vive do sagrado e de uma fé que está enraizada na esperança da ressurreição se deixe apanhar numa rede de desespero que conduz ao suicídio. Torna-se difícil aceitar que alguém que descobriu a vida como um dom de Deus decida, em desespero, terminar com esse dom. 
Vários estudos apontam para factores de risco como o stresse, a solidão e a cobrança desmedida. Dos padres quase toda a gente espera a perfeição, a presença constante, uma vida exemplar. Ainda há quem pense que um padre deve ser infalível, impecável, imperturbável, um super-homem protegido pela fé ou um anjo travestido de ser humano. Os padres são seres humanos e, como tal, com fragilidades, limites, necessidades, desejos de pertença e de compreensão. Se é certo que precisam de alimentar uma vida espiritual intensa que ilumine a sua vida e missão, também é verdade que isso não os isenta da sua condição humana e das mesmas lutas emocionais do ser humano. Num tempo em que se espera que um número mais reduzido de padres faça o mesmo que se fazia há dezenas de anos e, consequentemente, com o multiplicar de solicitações, é normal que também eles se deixem enredar na trama do stresse, restando pouco tempo para tratar da sua vida pessoal e saúde mental. Ainda por cima, a sociedade continua a exigir-lhes uma perfeição que não existe e não têm companhia nem encontram facilmente ombros amigos com quem desabafar e partilhar a sua vida diária, preocupações e dificuldades. O padre é um ser humano!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A síndrome de Burnout e os padres"

quarta-feira, setembro 03, 2025

abandono [poema 399]

quando o som da tua voz faz eco em mim 
quando as tuas palavras se juntam e crescem por dentro 
vejo apenas a forma dos teus lábios 
e o desenho de um beijo que se torna eterno... 

aperto no peito a cor dos teus olhos, 
quando o tempo se veste dessa mesma cor 
e tudo em redor parece o teu olhar, 
quanto te procuro sem te ver, mas te vejo por dentro... 

o tamanho dos teus braços não tem tamanho 
são apenas um abraço e o cobertor 
numa manhã que parece noite 
num dia de verão que parece inverno 
numa brisa que parece uma tempestade 

numa chuva que me escorre no rosto 
 
e a soluçar me diz: estou vivo e tu não morrerás 
em mim