terça-feira, junho 06, 2023

A humanidade dos funerais

Quanto mais tempo estamos numa comunidade, mais conhecemos as pessoas e mais estabelecemos pontos de amizade, o que é bom, mas também aumenta a dificuldade em presidir aos funerais e despedirmo-nos de pessoas que se tornaram nossas amigas. Justifico assim as primeiras lágrimas que vieram ao meu rosto quando, ao chegar à igreja para fazer o funeral de um paroquiano amigo, agarrei numa das pontas do caixão, como que querendo abraçar quem estava repousado dentro dele. Na sacristia, antes de me paramentar, respirei fundo várias vezes, mas não as suficientes para começar a eucaristia de olhar aberto e limpo. Embarguei a voz inúmeras vezes. Reconheço que o cansaço tem-se acumulado em mim e isso ainda nos torna mais frágeis e sensíveis. O amigo de quem nos despedíamos já não conseguia falar nos últimos tempos, porque o cancro se alojara na boca. Apenas trocávamos mensagens. Por isso, na homilia achei que devia partilhar uma mensagem que recebera dele no segundo domingo de Páscoa, em resposta a um áudio que lhe enviara com uma reflexão a propósito do nosso amigo Tomé, o discípulo que costumamos associar à dúvida, mas que é um grande exemplo de fé. Este meu amigo dizia, na mensagem, “Sou o Tomé que acredita mesmo e que está resignado que o meu futuro próximo depende de Deus. Se Ele acha que a minha vida terrena está a chegar ao fim então é porque já percorri o caminho que me estava destinado. Hei-de prosseguir a minha vida nova junto de Deus onde vou esperar pelos meus familiares e amigos”. Lembro que me inclinei diante daquelas palavras fortes que acabara de ler. Ditas com a verdade da fé, eram fabulosas. Não podiam ser ditas com resignação sem mais. Eram ditas com a verdade do coração, a verdade que brota da certeza da ressurreição. Na altura, fiquei muito contente e inclinei-me diante daquelas palavras tão cheias de Deus. Mas agora que estas se concretizavam estava com a voz embargada, com o coração apertado e a sentir o peso da responsabilidade oportuna de testemunhar a minha fé na ressurreição. Reconheço que o fiz na fragilidade e na dor, que se calhar é a melhor forma ou a mais autêntica. Fi-lo, misturando a alegria agradecida, que brota da certeza da ressurreição, com a tristeza que a saudade traz consigo. Quando terminámos as cerimónias, e já ao sair do cemitério, banhado em lágrimas e sem conseguir levantar os olhos do chão diante das centenas de pessoas presentes, uma paroquiana amiga veio ao meu encalço e disse mais ou menos ‘Então, senhor padre. O senhor é sempre tão forte’, e eu respondi ‘nem sempre’. E agradeci a Deus a minha humanidade! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os funerais fazem-me dor de estômago"

4 comentários:

Anónimo disse...

fiquei com lágrimas, padre.
deve ser mesmo difícil
sem mais palavras

Ailime disse...

Boa tarde Senhor Padre,
Também fiquei com os olhos húmidos ao ler esta sua confissão.
Os senhores Padres são seres humanos e também choram. Jesus chorou a morte de Lázaro.
Orgulhe-se da sua sensibilidade e humanidade, por em si mora o Senhor.
Ailime

Zilda disse...

Agora mesmo estamos no luto de colega de trabalho e amizade de mais de trinta anos. Muito triste ninguém aceita esse distanciamento pra SEMPRE. Estou are pensanfo um pouco mais no sentido da minha própria vida neste momento neste mundo abençoado por DEUS.

Anónimo disse...

Ohhhh que beleza!!!!