quinta-feira, novembro 02, 2023

Poderia ter sido mais moderado, padre

Diante do enigma e mistério da morte, estes dias de romagens ao cemitério, optei por ler aquela passagem em que Jesus diz ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’, e fazer alusão à diferença entre dia de ‘finados’, porque a palavra vem do latim ‘fine’ e aponta para o fim, e o dia de ‘fiéis defuntos’, porque a palavra defunto vem de ‘fungor’ e significa ‘cumprir’. Escolho a segunda para dizer que a vida dos que partiram ‘cumpriu-se’, chegou ao seu cumprimento aqui na terra peregrina e alcançou a eternidade. Por isso convido a fazer memória agradecida pelo dom da vida dos que amamos e já partiram. Agradecer por terem cumprido a sua missão. Agradecer mais ainda o dom das suas vidas nas nossas vidas. 
Mas ela não quer ouvir falar positivamente da morte. Não quer achar que as vidas se cumprem quando nós achamos que ainda nos fazem falta. E, por isso, no final, porque lhe custou a intensidade das palavras, veio dizer-me com amizade: o senhor padre poderia ter sido mais moderado. Viu o pai falecer há uns largos meses, mas o tempo insuficiente para fazer de conta que não lhe doi ou para atravessar a dor. Doi e fica-se na dor demasiado tempo. Ou fica demasiado tempo a fugir da dor. Vai serenando, mas não gosta de pensar que o pai realmente partiu. É como se, cada vez que pensa na realidade da partida, não quisesse pensar que é realidade. Disse ainda que me entendia, mas que achava que não devia ter falado como falei. Gostei da sua sinceridade. Contudo, ou a mensagem não passou tal como a idealizei, ou esta jovem é o claro fruto desta sociedade que tudo faz para esconder a dor ou evitar confrontar-se com ela.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"

6 comentários:

Cisfranco disse...

Caro Padre (permita-me que assim o trate), sou frequentador deste seu confessionário onde vejo a sua “pregação” que sempre me agrada e às vezes conforta. Hoje é sobre a morte, assunto pesado e sério e também o mais certo que impende sobre cada um de nós. O nosso credo diz “…creio na ressurreição da carne e na vida eterna.” Nós proclamamos que das cinzas da sepultura irá surgir um corpo ressuscitado, tal como Cristo que saiu da sepultura com um corpo glorioso. Como isso será possível?!… Isto soa a um absurdo. A alma (espírito, o que constitui a individualidade da pessoa, o eu, chame-se-lhe o que for) já está em Deus. Então para quê juntar-lhe “no último dia” também o corpo?! O corpo, na melhor das hipóteses será cinza e pó. Então para quê a sua reconstituição? A pessoa já foi salva ou condenada. Para quê chamar o corpo para esta equação?
Padre, estas são como que perguntas existenciais, não de agnóstico ou ateu, mas de crente católico. São perguntas mesmo de confessionário. Como me explica o aparente paradoxo?
Muito obrigado e que Deus o abençoe.

Confessionário disse...

Caro amigo, não sou exegeta, mas sei que não se pode interpretar a Bíblia à letra.

Creio que, para poder ajudá-lo um pouco mais a entender, remeto-me ao corpo ressuscitado de Jesus que os apóstolos, os seus mais íntimos amigos, não conseguiram reconhecer de imediato, sinal de que o seu corpo não era bem como antes. Tinha uma forma diferente. Isso prova que a ressurreição não acontece com a mesma forma de corpo que conhecemos. O que quer dizer é que ressuscitamos por 'inteiro'. Assim sucinta e rapidamente, é o que gostaria de lhe responder. Mas talvez alguém mais possa dar seu contributo. É, de facto, um assunto difícil!

Ailime disse...

Boa tarde Senhor Padre,
Gostei da forma frontal como abordou este assunto da finitude, embora a mim me custe a realidade, mas é enfrentando-a que a vencemos.
São homilias como as suas e atitudes que nos ajudam a crescer na vida, por mais idade que tenhamos.
Bom fim de semana.
Ailime

Cisfranco disse...

Obrigado pela sua resposta pronta e sincera, se bem que não tenha tido o condão de dissolver ou diluir um pouco a minha dúvida. Confesso até que ainda fez de certo modo surgir novas dúvidas. O senhor diz que a ressurreição do corpo a que nos estávamos a referir significa uma ressurreição por “inteiro”. Agora pergunto eu: então desde a nossa morte (momento em que a alma entra na eternidade) até à ressurreição dos corpos, em que estado é que se encontra a alma? Está em Deus ou não? Aqueles que veneramos como santos, como é que eles se encontram agora, estando os seus corpos perdidos em cinza, pó e nada? No fundo a pergunta é só uma: porque é que o corpo perdido e desfeito é necessário e nós continuamos a falar na ressurreição da carne?
Tendo receio de escandalizar alguém não viria para aqui com dúvidas destas, mas uma vez que decidi comentar e vendo ser bem-vindo, também me admira que os leitores, crentes ou descrentes, que tenham lido a minha 1ª intervenção, não tenham reagido. Este é um assunto fracturante.

Confessionário disse...

Como sabe, para falar de coisas que são mistério e que nos ultrapassam, o homemm precisa de falar com a linguagem e "matérias" que conhece.
Eu não sou propriamente especialista em dogmática em geral ou em soteriologia em particular. A minha resposta vem do entendimento que eu tenho deste assunto e do modo como eu tento comunicar esse entendimento. Também não acho necessário que os nossos corpos ressuscitem. Nem sei se faz sentido pensar e insistir nisso, uma vez que até o nosso corpo vai mudando com o tempo (o que nos levaria a perguntar se o corpo que iria ressucitar seria o corpo de jovem ou o de velho!). Eu creio que ressucitamos por "inteiro" (e insito com esta palavra porque não encontro outra para me fazer entender!), e isso significa que tudo o que nos compoe ou define resssucita, mas não sei se precisamos de matéria. E por isso dei o exemplo de Jesus ressucitado que os seus mais íntimos nem reconheceram. Ou seja, a sua forma corpórea não deveria ser igual à forma corpória que eles estavam habituados a ver. Embora não saiba o suficiente para o ajudar mais, quero apenas lembrar que a palavra "carne" não significa só matéria. A palavra grega para "carne" no Novo Testamento é sarx. Talvez possa encontrar mais respostas à sua dificuldade, procurando mais sobre este assunto.
cumprimentos

Cisfranco disse...

Muito obrigado pelo seu comentário franco. As palavras (e os comentários que são feitos com elas) são como as cerejas: agora é que uma série de interrogações aparecem, agarradas umas nas outras… Mas isso é bom e fico a gostar ainda mais do seu blog.