quinta-feira, maio 09, 2013

A lenha do Carlos, que é meu sacristão

O Carlos, que é meu sacristão, como já havia dito, andou a trabalhar comigo numa destas manhãs frias de vento e chuva miudinha. Depois foi à vida dele, e encontrámo-nos de novo ao final da tarde que manteve o frio, o vento e a chuva miudinha. Encontrámo-nos na igreja para a missa. Cumprimentos para aqui e acolá, conversas sobre o tempo, e saiu-me sem querer a pergunta sobre o que tinha feito desde a manhã. O Carlos respondeu-me que tinha ido à lenha, pois o frio aperta e não tinha em casa. Pois muito bem, disse eu, então já tem o lume aceso para mais logo. Acenou que não e sorriu. Sabe, padre, quando vinha para casa, com o carro de mão carregado, encontrei uma senhora, daquelas que precisam sempre de uma mãozinha de ajuda, e perguntei-lhe se tinha o lume aceso. Ela respondeu-me que não, e eu ofereci-me para lho acender. Lá fui e lá lhe deixei o molho de lenha. Levara-lhe a lenha que tinha no carro, acendera-lhe o lume e fora em paz para casa. Como há coisas que não cabem facilmente no entendimento da nossa humanidade, e eu faço parte desse grupo que habita o mundo inteiro e que se vai esquecendo que ainda há Deus em muitas pessoas, perguntei-lhe, basicamente, Então e agora? Fora à lenha porque fazia frio, e agora não tinha lenha para emendar o frio. E o senhor Carlos encolheu os ombros e repetiu o Então e agora sem exclamações e interrogações. Agora é o que é. É o que se pode. E um dia se há-de ver no céu, que aí, sim, é que importa. E fez-me três perguntas. Primeira, Não é, senhor padre? Segunda, Então não é assim que temos de ser? Terceira, Somos cristãos ou não? E Mais uma vez o Carlos, que é meu sacristão, me deixou de boca e coração abertos.

17 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia!
Que história bonita.
Também eu faço parte do grupo de pessoas que se esquecem frequentemente que ainda há Deus nas pessoas, nos outros e em nós.
Todos os dias dou boleia a uma menina que está na turma do meu filho.
Um dia destes, vesti-me menos formal e coloquei uma bolsa a tiracolo, uma situação pouco comum no meu dia a dia.
Quando os deixei na escola a Carolina (vou chamar-lhe assim) antes de sair do carro disse-me: É tão bonita a sua carteira, gosto muito dela, e saiu sem me dar oportunidade de lhe dizer o que quer que fosse.
Não sei se foi a forma como aquelas palavras foram pronunciadas ou o conhecimento da situação de desemprego em que o pai se encontra, sei que nesse dia antes de dormir, esvaziei a carteira e meti-a dentro dum saco.
Dei-lho no dia seguinte.
Pedi-lhe desculpa por não ser a estrear, mas que lhe a dava com muito carinho.
Desde lá que a Carolina usa aquela carteira a tiracolo, e eu fico feliz por ver a felicidade e satisfação com que ela a usa.
Somos bem mais felizes quando fazemos algo pelos outros, ainda que não o façamos por ser cristãos recebemos sempre mais do que damos.

Bartolomeu disse...

Quanto à segunda pergunta formulada pelo Carlos, penso que deverias ter retorquido:Não. Não é assim que temos de ser. Mas é assim que devemos querer ser. Porque entre o "ter" e o "querer", existe a vontade e essa, padre, senta-se num banco de pernas muito sólidas, talhado na dureza da madeira do crer.
Já agora, permito-me transcrever o poema de Ricardo Reis:
Para ser grande, sê inteiro.
Nada teu exageres ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és, no mínimo que fazes.
Assim... em cada lago,
A Lua toda brilha;
Porque alta vive.

Confessionário disse...

Olá, Bartolomeu, achei muito interessante a tua proposta/resposta à 2ª questão. Agradeço

Anónimo disse...

Mais pelo clima, do que propriamente pelo desenrolar da acção, a história que o Senhor Padre muito bem conta, remete para a do próprio São Martinho. Reza a lenda que num dia muito frio e chuvoso (tenho pena mas não posso precisar se de manhã ou de tarde), indo São Martinho na sua vidinha, que no caso era ao serviço do Imperador de França, cruzou-se com um pedinte à beira da estrada. Nada mais tendo para lhe oferecer, o generoso homem desembainhou a espada, cortou a capa ao meio, e ofereceu uma das metades ao pedinte para que este se abrigasse do frio. Inexplicavelmente, brilhou o sol e abriu-se um glorioso dia de Verão. Mais tarde São Martinho teve uma visão de Jesus Cristo e decidiu consagrar-se. Bem sei que um carrinho de mão de lenha, não é muita fartura. Mas ainda assim, considerados os dados disponíveis, caso o Senhor Sacristão houvesse decido dividir o molho de lenha ao meio, ninguém raparia frio. A solução ora defendida é da mais lídima justiça. Conforma-se, inclusive, como os mais elementares princípios de equidade. Tem um alto patrocínio, como se demonstrou supra com o milagre e posterior visão de São Martinho. Acresce em favor que um Sacristão enregelado, pode não estar devidamente capacitado para desempenhar correcta e fielmente as funções de que foi superiormente incumbido. Argumento teológico. Não havia, pois, necessidade de a senhora meter tanta lenha na fogueira. Fica no ar a sugestão para actuações futuras.

Confessionário disse...

Supostamente na lenha que lhe sobrou da lareira, deixou-a lá para a senhora.

Quanto à história de S. Martinho, que pensava conhecer, na minha versão ele tinha dado a capa toda.

Considerações "teológicas" à parte: deve dar-se do que se e não do que sobra, certo?! lol

Anónimo disse...

É preciso um criptógrafo, para retirar alguma coisa desse seu português macarrónico, Senhor Padre! Mas não há sobras no que se reparte, há uma divisão perfeita e igualitária da unidade! LOL

Confessionário disse...

ahahahah
Era mais latinório: reescrevo com atenção, com os olhos a voltar para traz:

Supostamente o Sr Carlos deixou-lhe (à senhora, entenda-se) lenha para a lareira e, sobrando-lhe alguma, deixou-lha também.

Quanto à história de S. Martinho, a versão que eu conheço conta que ele não dividiu a capa, mas a doou toda.

Considerações "teológicas" à parte: deve dar-se do que se tem e não do que sobra, certo?! lol outra vez

Bartolomeu disse...

Desculpem-me a intromissão, mas... a unidade é passível de divisão?!
Deus, é divisível em dois (ou mais), notem que não referi; por dois, ou mais.
O Homem, é divisível?!
O Sol, divide-se?!
Do meu ponto de vista, só aquilo que parece uno, mas que na genese se compõe de múltiplos, poderá dividir-se. Como é o caso da lenha do Carlos, da capa de Martinho, a generosidade de ambos; e de ambos os corações.
E a propósito de corações e da divisibilidade dos mesmos (até pareço um puto da primária que vai hoje fazer a prova de aferição de matemática) aqui vai um poeminha de uma poetiza Gallega, Rosália de Castro:
Son los corazones de algunas criaturas,
Como los caminos muy transitados,
Donde las pisadas dos que ahora chegan,
Borran las pisadas de los que pasaron.
No sera posible que dejeis en ellos,
De vuestro cariño recuerdo ni rastro.
(e esta hein?!)
;)))

Anónimo disse...

"...deve dar-se do que se tem e não do que sobra,..."
E isto não é segredo, é Jesus Cristo nos ensina como partilhar.

"...E quando o dia vai a meio, partilho a primeira refeição...
Partilha?
Será partilha, oferenda, doação...
Não me atrevo a chamar-lhe comunhão.
Sim, partilho,
O alimento, o tempo, o lugar, o pensamento, o Coração.
Partilho a oração.
Agradeço Senhor, pela partilha, pela oportunidade de partilhar."
PR

Anónimo disse...

Caminho de reflexão interessante Bartolomeu! Fez-me pensar que a generosidade de um grande coração, afere-se mais pela divisão do que pela multiplicação… Vamos a exemplos. A matemática aqui não é pura é essencialmente prática… Jesus Cristo multiplicou pães e peixes, para alimentar uma grande multidão… Mas Ele, que é uno com Deus e o Espírito Santo, também dividiu (repartiu) o Pão e o Vinho e deu-o aos seus discípulos. Foi mais generoso ao multiplicar ou ao dividir, pergunto eu? A divisão não pode ainda ser a mais perfeita forma de multiplicação? É esta a poesia que a matemática tem...! LOL

Bartolomeu disse...

Anónimo (bonito nome, lembra-me Antónimo... o contrário do que é, ou achamos poder ser. Bom, mas adiante).
Convém que estabeleçamos alguns parâmetros que nos permitam raciocinar, mesmo que só matemáticamente.
Ou seja: Se estamos a referir-nos à matéria, então podemos pensar em divisão.
Se por outro lado, nos referimos ao espírito, penso que podemos pensar somente em partilha.
Se possuirmos conhecimentos bastantes para meter o nariz nos misteriosos campos da metafísica, nesse caso podemos "dar uma" de Einstein e cisar o átomo... as consequências do acto se verão depois.
;)

Peregrino disse...

Alguns luzeiros do Pai lá vão brilhando no meio da noite … misericórdia Senhor…!

Anónimo disse...

Ó Bartolo meu... vai para aí uma enorme confusão, no campo das ciências físicas e matemáticas... e agora tenho que me dedicar às letras! Um fim-de-semana cheio de sol!
Beijos

Anónimo disse...

Permita-me agradecer-lhe, do fundo do coração, esta bonita partilha que mais uma vez aqui nos deixou, padre confessionário. Quantas vezes não são os Carlos deste mundo, que na simplicidade e humildade dos seus pequenos gestos, nos dão as maiores lições!

É assim que temos que ser. Ter uma mão estendida, mesmo quando nos apetece fechá-la. Um ombro disponível, mesmo que esteja dorido. O espírito aberto, ainda que não concordemos. É isso que é estar presente, sermos uns para os outros e uns dos outros. O Carlos com a sua atitude marcou toda a diferença. E quão bom é fazer, ainda que uma pequeniníssima diferença, na vida de quem necessite!

Foi bom dizê-lo com todas as letras. Não é que nós não soubéssemos, que era assim que devia ser. Mas quantas vezes andamos na vida às voltas, fechados no nosso pequeno mundo, enredados nas arrelias do nosso dia-a-dia, absortos nos nossos problemas, e nos esquecemos de olhar para os que estão mesmo à nossa beira com verdadeiros olhos de ver!

Como se as dificuldades do mundo pudessem apenas ser vividas através da televisão e dos jornais, a partir do nosso sofá, sem nada sabermos das dificuldades por que passa o nosso vizinho do lado!

O Carlos deu tudo o que tinha, sem esperar nada em troca. Passou mal para que quem precisava mais do que ele pudesse passar bem. E ainda assim, não ficou mais pobre, pelo contrário, aceitou isso como um simples facto da vida. Fez-me pensar qual foi a última vez que tive um gesto desses. E infelizmente, no passado recente não encontrei nenhum, que tivesse praticado relativamente a alguém que não pertencesse à minha própria família.

Habituamo-nos a olhar para os outros mais na expectativa do que nos podem dar, de como podem satisfazer as nossas vontades e os nossos caprichos, do que do que podemos oferecer sem receber nada em troca, ou mesmo ficando prejudicados. Obrigada, por lembrar, o que é ser cristão!

PF

Anónimo disse...

É assim, que com pessoas como o sacristão do pe. confessionário que se faz com que o céu desça à terra, mesmo em dias frios e chuvosos...
Pelo menos para a pobre senhora!
Bem-haja por esta história, tão comovente

Anónimo disse...

Senhor Padre permita-me deixar aqui uma pequena oração, que rezo todos os dias, e de que tenho recebido muitas graças:


Senhor,

ensina-me a ser generoso,
a dar sem calcular,
devolver bem por mal,
servir sem esperar recompensa;
aproximar-me ao que menos pode retribuir-me,
amar sempre gratuitamente,
trabalhar sem preocupar-me com repouso,
e ao ter outra coisa que Te dar,
doar-me em tudo cada vez mais àquele que precisar de mim,
esperando só de Ti a recompensa.
Ou melhor: esperando que Tu mesmo sejas minha recompensa.

Amém

Irmã Doroteia

Anónimo disse...

Esta lenha aqueceu-me a alma e o coração.
Lindo exemplo este do Carlos.
Quem me dera conhecer mais destes "Carlos"
Obrigado Senhor, por ainda existirem pessoas humanas, com um olhar puro, amavel e bondoso assim.
bem haja
Maria