terça-feira, maio 08, 2007

Esta é a minha arma

Cheguei, como sempre, mais cedo. Estava diante do sacrário com o terço nas mãos. Admirei-me. Não o fazia tão devoto. De cinquenta e poucos anos, este amigo costuma usar quase todas as circunstâncias e situações para a brincadeira. Por isso nos damos tão bem. A amizade estende-se até às palavras medidas, mas sempre a roçar a gargalhada. Há quem ache exagero ou falta de respeito. Eu não. Eu gosto de viver assim com palavras fora de sítio no sítio certo, no limite do significado das palavras que podem ter ou ser usadas noutros sentidos, bem mais divertidos. Há quem o julgue homem de não se levar a sério. Eu levo das duas maneiras. A sério e a brincar. Admito que mais a brincar. No final da missa ficámos a sós com uma que outra piada. No momento da despedida realcei a sua postura com o terço dedilhado. Dizia-lhe que tinha subido mais uns pontos na minha consideração. Como se isso fosse importante. Era mais uma daquelas. Colocou-se então entre mim e a porta. Estancou-me, e olhou-me como ainda não tinha dado conta. Sabe, este terço anda sempre comigo há mais de trinta anos. Ganhei-o como prémio. Quando era miúdo acompanhava sempre o meu avô que era o sacristão. O padre, na altura, para nos fazer ir ao terço, lançava um concurso. Cartões. Por cada ida ao terço recebíamos um. No final do mês de Maio quem tivesse mais recebia um prémio. Eu nunca faltava. A bem ou a mal, nunca faltava. Era ainda uma oportunidade para estar fora de casa. Torci um pouco o nariz às últimas palavras e ao concurso, mas cocei-o na esperança desconfiada. Nunca tinha pensado numa assim. Não me parece de inculturar nos dias de hoje. Claro que o ganhei eu, padre. Nunca mais me abandonou. E mostrava-o. Andou comigo por Angola. Garanto-lhe que o rezo todos os dias. Nunca em trinta e tal anos, desde que o recebi, ficou por rezar. Em Angola juntava-me a um colega e, numa hora mais leve, rezávamos por aqui. O terço ia mexendo-se de um dedo para o outro na sua mão. Eu acompanhava o terço, os dedos, as palavras, os olhos molhados. Posso ser um doidivanas, mas com Deus nunca brinquei. Esta é a minha arma. Sempre foi. Todos os dias, padre. Caramba, respondi. E acrescentei que não tinha mais pontos para subir na minha consideração. A minha boca admirada perdera os pontos. Recordei a minha mãe que também rezava três terços todos os dias. Lembrei quanto gostava e gosto dela. Este amigo, o Zé, ensinou-me a gostar ainda mais dele. Fiz-lhe continência.

25 comentários:

Elsa Sequeira disse...

Que lindo!
As pessoas sempre nos vão surpreendendo!!!
às vezes pensa-se que as pessoas que passam a vida "na brincadeira" não levam nada a sério, que grande lição, para muito boa gente!!
Adorei ler!

Hadassah disse...

Gosto muito de pessoas assim...desprendidas em relação ao que os outros pensam. Surpreendem-me sempre!

Ni disse...

Todos as pessoas têm um mundo só delas, grande ou pequeno, mais ou menos atractivo, mais ou menos receptivo... É um tesouro... uma arma que nos protege e pode nos pode atraiçoar. Aprendemos a viver bem nele, mas nunca "num mundo à parte".

Anónimo disse...

As pessoas que levam a vida na brincadeira não são necessariamente, as mais irresponsáveis, felizes e inconscientes.

Pensemos nos bobos da corte e no Benny Hill que morreu só!

Provavelmente, até serão muito mais conscientes do que muita gente com ar muito credível! Quando vejo gente muito "direitinha" fico desconfiada. Penso que são pessoas que num ou noutro momento, quando menos se esperar, descambam fortemente.

Os risonhos estarão, talvez, muito mais atentos ao caricato e ridículo da vida; diria mesmo que possuem um sentimento trágico da vida. A consciência das misérias do Homem fá-los "gozar" com quase tudo.

Não interessa exactamente a opinião dos outros acerca deles. Aliás, convém que muitos até nem os aprecie. Seria insultuoso!
Não são pessoas politicamente correctas. Não estão atadas ao clientelismo. Por isso, são muito melhor como pessoas. Não "espetam facas nas costas" e melhor há sempre alguns que nem topam a verdadeira mensagem, porque nunca se questionam. Acham-se o máximo,levam-se muito a sério, são garantidamente felizes até à morte.

A propósito eu que não entendo nadinha de Igreja e muito menos de rezas, tenho um terço que me foi oferecido por uma colega de caminhada a Fátima e desde aí tenho-o sempre na mesa de cabeceira, quando saio por mais do que um dia ele vai comigo.

Basta que tenhamos a consciência da existência de um Deus!

Teodora

A Flor disse...

Gostei do post e do titulo também! :)

Esta é a minha arma - O AMOR!

Deixo um abraço fraterno no amor de Deus


Flor

Anónimo disse...

Oi, confessionário
Esta tua história fez-me lembrar um amigo meu, que me chama de saltitona, que me diz que eu ando sempre de salto em salto, de amigo em amigo (no sentido da amizade!!)... que não me contento com o que tenho, diz-me que eu crio laços e não raízes, ele pensa assim...e eu rio, digo sim, brinco com isso e ele também... mas no fundo, sou como este teu amigo...por muitos saltos que dê, nunca esqueço os primeiros saltos que me marcaram, que me modificaram, que me fizeram, crescer...

Nunca lhe expliquei isso, é certo, porque se nos basearmos nas aparências ele acaba por Ter alguma razão...mas quando esqueço as aparências, e olho para dentro de mim, aí vejo que ele não tem razão nenhuma, mas também torna-se difícil, pedir ao meu amigo que olhe para dentro de mim...por outro lado não gosto de dizer as coisas ás pessoas, prefiro que elas as descubram...

Com o teu amigo aconteceu exactamente a mesma coisa, ficaste a vê-lo por fora, naquilo que ele demonstrava ser... pensavas que ele era de uma forma, afinal... nunca o imaginarias a rezar o Terço...as pessoas são uma caixinha de surpresas! Fico feliz pelo teu amigo e por ti!

Esta história tocou-me, emocionou-me... sentia-a minha, noutra dimensão...
será que o meu amigo, um dia também vai chegar assim a uma conclusão parecida com a tua?? Eu espero que sim...

bj
mariana

C.M. disse...

Belo postal!

Fico impressionado com o significado daquele Terço...

Luis Carlos disse...

Olá,

Cada um usa os amuletos que considera essenciais à sua protecção contra o "mal" ou para que o "bem lhe seja favorável".

O que eu sei é que Jesus nunca usou amuletos de "boa sorte" ou de "contra o azar".

Por isso não percebo por que as igrejas cristãs continuam a incentivar o uso destes apetrechos, que tem tudo de idolatria.

Até já,
Luís Carlos

Confessionário disse...

Luís Carlos, o terço não é um apetrecho. É algo que se utiliza para rezar e, consequentemente, para chegar melhor a Deus... tal como tu quando lês um livro ou usas algo para rezar...

Não tem nada de idolatria!!! Não serve nem para o azar nem apra a sorte. Ninguém anda com ele ao Pescoço (imagino e espero). Andam com ele no bolso para rezar assim que tiverem oportunidade. Que confusão a tua! Amuleto!?

Anónimo disse...

Para os tempo de hoje onde tudo o que se faz deve estar de acordo com as psicologias modernas, nomeadamente na maneira de fazer catequese,podemos concluir que afinal à 50, 60 anos os métodos tambem eram eficazes.Também a raíz da minha fé, me foi dada em casa, pela avó e pelos pais. Hoje qual é o papel da familia no acompanhamento das nossas crianças e adolcentes no seu crecimento e na sua relação com Deus?

Anónimo disse...

Eu acho muito mais saudável andar com um terço no bolso, acender velas ou ir à missa (tudo dentro "dose" certa), do que andar a tomar Prozac (é muito tóxico), ir à bruxa ou ou ao astrólogo.

Eu sei sei que não se podem misturar as coisas, só que há muitas pessoas que o fazem!

Teodora

José Fernandes disse...

LANÇO DAQUI UM REPTO A TODA BLOGOSFERA PARA QUE TODOS, HOJE À MEIA NOITE FAÇAMOS UMA ORAÇÃO PELA PEQUENA MADELEINE PARA QUE DEUS PERMITA QUE ELA VOLTE PARA CASA SÃ E SALVA. PARA OS AMIGOS BAHÁ'ÍS, SUGIRO A "EPÍSTOLA DE AHMAD"

Paulo disse...

Lindo texto, de fazer sentir arrepios no corpo e as lágrimas quase a querem saltar...tocou-me, talvez porque há pouco tempo recomeçei a senti-Lo dentro de mim.

Luís disse...

Para nos deixarmos surpreender é preciso ouvir os outros, escutá-los! Deixar quebrar, desmoronar, as nossas ideias preconcebidas dos outros...! Deixarmo-nos contagiar, elevar... Penso que Cristo devia ser especialista nisto! E a Felicidade passa por aqui!
Obrigado pela simplicidade e pela partilha.
E... Parabéns!

Anónimo disse...

Realmente, só confirma que nunca conhecemos totalmente ninguém, nem mesmo aqueles com quem convivemos paredes-meias. Estamos sempre a surpreendermo-nos: se for no bom sentido é óptimo, mas quando calha de ser ao contrário, apanha-se com uns baldezitos de água fria.

Porisso, nunca devemos julgar, seja quem for, com muito afinco, pois podemos cometer graves injustiças. A menos que houvesse uma medida de aferição para avaliarmos do caracter de cada um, ou nos fosse dado possiblidade de entrarmos no seu coração, sentir e pensar em uníssono para avaliarmos acertadamente - mas essas coisas não nos são possíveis.
Só Ele conhece verdadeiramente o coração de cada um e faz um juízo justo.

Das armas que cada um usa, pois cada um usa as armas de que dispõe, de que mais gosta e aquelas que lhe dizem algo de positivo e de benéfico para se defender das tempestades e/ou para chegar mais facilmente a Deus.

No caso das pessoas alegres, de facto, são realmente encantadoras e dá gosto conviver com elas (embora em demasia também cansa e, por vezes, falta-lhes sentido de oportunidade), mas não acho que sejam, só pelo seu caracter bonacheirão, melhores nem piores do que os outros - seria muito redutor avalizarmos as pessoas pela maior ou menor propensão para a brincadeira.
Mas cada um é como cada qual.

Anónimo disse...

Eu não faço oração nenhuma pela pequena Madeleine.
Se a fizer, faço-a por todas as crianças que têm sido vítimas das mesmas desgraças, especialmente pelas crianças portuguesas (das quais nunca ninguém se lembrou de fazer orações colectivas) cujos processos judiciais repousam no arquivo morto - é um escândalo o pouco ou nada feito pelas nossas crianças sempre preteridas nas nossas preocupações; mostramos bem, agora, nesta desconformidade e diferença de tratamento por uma menina estrangeira, como somos injustos e tratamos mal os mais desprotegidos que não têm o favorecimento da comunicação social estrangeira.

A propósito da religião Bahaí, o vosso cristo já chegou à Terra?

Elfo disse...

O repto à oração por uma criança, seja ela de que nacionalidade for não pode nem deve ser visto como um acto xenófobo. Os meus príncipios dizem-me que devemos zelar pelas minorias no nosso país e, a pequenina Madeleine pertence a uma minoria. Que Deus não permita que algo de mal lhe aconteça, para tal considero que a Oração é a maior das dádivas que Deus deu ao ser humano. O Poder da Oração não pode ser avaliado pelas nossas mentes pequenas e mesquinhas. Devemos, TODOS zelar para que as nossas diferenças não nos subtraiam ao dever de orar pelos mais desprotegidos.
Bem hajam a todos quantos quiserem orar esta noite.
E, já agora, Cristo O Filho de Deus não é pertença de nenhuma religião em particular. Devemos disseminar os Seus ensinamentos e as Boas Novas que Ele nos trouxe.
Somos filhos do mesmo Pai, irmãos em Cristo e devemos cumprir os Seus mandamentos. Jesus disse:" Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei"

reporter peregrino disse...

Pois, aprendamos a ver, a olhar bem fundo os outros e a nós próprios, primeiro por dentro e então depois para fora, é tão simples! Nós é que costumamos complicar tudo...

Marcelino Teles disse...

Vê-se caras mas não se vê corações. Só Deus sabe quantos rezam o terço, muitos deles mesmo sem terço!
Gostei!

Anónimo disse...

Pois, exactamente, cá está... a minha vida inteira... presa num terço, ou na pessoa que o reza há trinta anos...
Andava na escola, pensavm que eu era uma menina mimada, em casa apanhava todos os dias...
cresci tornei-em uma boa aluna...os colegas, os professores, quase que me erguiam uma estátua...e nunca me chamaram nem bétinha, nem "marrona", nada disso,eu era pura adrenalina (ah! ainda sou...)...em casa, apenas ouvia..."não fizeste mais que a tua obrigação..."
vivi sempre com Deus...mas como não ia á missa...todos pensavam que não...
até ao dia que comecei a ir...e ainda hoje me perguntam.."Porque sabes tantas coisas? Nunca ias á missa?"..pois, não, mas sempre li a Bíblia..."Sério? não podia imaginar..." respondem...
rezar...pois também tenho a minha forma peculiar de o fazer, uma forma muito minha, e que poucos a entendem...mas, ultimamente tenho rezado todos os dias uma dezena pela Maddie.

confessionário, gosto de passar por aqui!
1 beijo

Luisa Oliveira

Danilo disse...

E quantas vezes somos tão sérios, mas brincamos com Deus, recebendo sua graça em vão!

Anónimo disse...

Ja há bastante tempo que o leio, mas nunca deixei comentário... o seu blog faz-me pensar. Adoro todos eles... uma grande lição de vida para todos que o lêm.
O meu sincero Obrigada!

Anónimo disse...

Será que também vais ter de pôr activar o "moderador", confessionário?
Filó

Confissões a Jesus disse...

Padre, gostei do Zé. Afinal o Zé é da nossa Família!Qualquer dia tens de dar contas das personagens das tuas histórias... "O Zé passados 6 anos", já pensaste nisso? Ocorre-me que podias publicar um livro com os teus posts, seria um sucesso de vendas. Teríamos era de te clonar :)depois. Bom escritor és, indubitavelmente.

Confessionário disse...

Olá, Confissões
Agradeço a proposta do livro. Não é nada que não tenha ja posto em cima da mesa. Mas há-de ser o que Deus quiser!

ahhh, e quanto ao Zé... há muitos Zés...